Uma Dose de História das Bebidas que dão Pique
Cafeína, a droga psicoativa Matéria extraída do site: http://www.markcafe.com.br/cafeina/cafeina/572-cafeinaadrogapsicoativa |
Foi há menos de 200 anos que se descobriu que o “pique” de energia que se sente com o café e o chá é o mesmo efeito, produzido pela mesma substância química. A cafeína é um alcalóide que ocorre naturalmente nas folhas, nas sementes e nos frutos do café, chá, cacau, na noz da árvore da cola (Sterculia accuminata) e em mais de 60 outras plantas. Essa antiga droga com muitos efeitos benéficos foi receitada para uso humano ainda no século 6 a.C., quando o grande líder espiritual Lao-Tsé, pelo que se relata, recomendou o chá como elixir aos discípulos da sua nova religião, o Taoísmo.
Mas foi apenas em 1820, depois que as casas de café já haviam proliferado na Europa Ocidental, que um novo tipo de cientista começou a se perguntar o que haveria nessa bebida que a tornava tão popular. O químico alemão FriedLieb Ferdinand Runge foi o primeiro a isolar a droga do grão de café. A substância foi chamada de “cafeína”, ou seja, algo que se encontra no café. Em 1838, porém, os químicos perceberam que o ingrediente ativo no chá era o mesmo da cafeína de Runge. Antes do fim do século, a mesma droga foi encontrada na noz de cola e no cacau.
Mundo moderno
Não é coincidência que o café e o chá “pegaram” como moda na Europa logo que as primeiras fábricas anunciaram a Revolução Industrial. O uso generalizado de bebidas cafeinadas – substituindo a cerveja, até então predominante – facilitou a grande transformação do esforço econômico humano, que se deslocou das fazendas para as fábricas. Ferver água para fazer café ou chá reduziu as doenças dos trabalhadores nas grandes cidades superpovoadas, e a cafeína no organismo desses novos operários não os deixava adormecer em cima das máquinas. De certa forma, a cafeína é a droga que possibilitou o surgimento do mundo moderno. E, quanto mais moderno fica o mundo, mais nós precisamos dela.
“Durante a maior parte da existência humana, a hora de dormir e acordar se pautavam pelo sol e pelas estações”, diz Charles Czeisler, neurocientista e especialista em sono da Escola de Medicina de Harvard. Quando a natureza do trabalho mudou, passando de atividades realizadas em lugares fechados, reguladas pelo relógio, os trabalhadores precisaram adaptar-se. O uso generalizado de bebidas e comidas cafeinadas – em combinação com a invenção da luz elétrica – permitiu que as pessoas enfrentassem um horário de trabalho ditado pelo relógio, não mais pela luz do dia nem pelo ciclo do sono natural.
Os cientistas criaram várias teorias para explicar como a cafeína interfere na adenosina, a substância química presente no corpo que age como sonífero natural. A cafeína bloqueia o efeito hipnótico da adenosina, evitando que a pessoa adormeça. Como foi provado que cafeína, em doses moderadas, melhora o humor, a disposição e o estado de alerta, é uma verdadeira poção mágica para estudantes e pesquisadores presos em laboratórios até as 3 da manhã. Paul Erd´os, matemático húngaro que muitas vezes trabalhava em suas equações 24 horas seguidas, declarou certa vez: “Um matemático é uma máquina de transformar café em teoremas”.
A capacidade da cafeína de acabar com o sono também faz dela a droga preferida de quem viaja longas distâncias. Existem muitos remédios para o jet lag (ou “atraso de jato”, uma série de transtornos físicos, como os que envolvem o sono, para quem empreende grandes viagens de leste para oeste ou vice-versa de avião). Mas um deles, apresentado em A Vantagem da Cafeína, livro de Alan Weinberg e Bonnie K. Bealer, consiste em abster-se de cafeína por vários dias antes de viajar e depois tomar pequenas doses de café ou chá no dia da chegada, de preferência à luz do sol, para ficar alerta, até chegar o horário de dormir normal no novo destino. (Durante semanas de viagens pelo mundo para escrever este artigo, o método funcionou para mim).
“A cafeína ajuda as pessoas a assumir o controle do seu físico e tirá-lo do ritmo circadiano humano, ‘programado’ no cérebro de todos nós”, diz Czeisler. Mas é então que uma sombra de tristeza passa pelo rosto alegre do médico, e seu tom de voz muda bruscamente. “Por outro lado”, diz com solenidade “há um preço muito pesado por todas essas horas a mais em que ficamos acordados”. Sem sono suficiente – dormir as tradicionais 8 horas a cada 24 horas seria o mais correto –, o corpo humano não funciona da melhor maneira nem física, nem mental, nem emocionalmente. “Como sociedade, de modo geral, temos enorme privação de sono” diz o médico.
De fato, há um certo círculo vicioso na moderna ânsia pela cafeína. “A principal razão que faz as pessoas do mundo todo a usarem é para ficar despertas” diz Czeisler. “Mas o motivo principal pelo qual as pessoas precisam dessa muleta é a falta de sono. Pense nisso: usamos a cafeína para compensar o déficit de sono – o qual é resultado, principalmente, do uso da cafeína.”
Dietrich Mateschitz não perde o sono pensando no quanto consome de cafeína. Com um sorriso aberto e caloroso no rosto, esse austríaco, mago do marketing, afirma ficar “bem a vontade em situações de perigo”, quer esteja escalando um paredão ou percorrendo uma trilha dos Alpes, quer fazendo negócios. Mateschitz realmente deve se sentir à vontade com o perigo, pois o maior risco que já assumiu lhe rendeu um retorno espetacular. Ele conseguiu colocar um produto novo no mercado, gerou centenas de imitadores e ficou bilionário – tudo isto em 15 anos.
A invenção do Red Bull
Na década de 1980, Mateschitz trabalhava para a Blendax, empresa alemã de cosméticos, vendendo produtos de beleza e creme dental no Oriente. Seus freqüentes vôos noturnos de Frankfurt a Tóquio e Pequim sempre resultavam no odiado Jet Lag. Mateschistz era um vendedor; precisava estar no pico da sua energia para dar conta do trabalho ao chegar a seu destino. Então, começou a notar que muitos motoristas de táxi do Oriente viviam bebericando certo tônico de uma garrafinha. Depois de mais um vôo exaustivo até Bangcoc, ele pediu ao taxista que lhe desse um pouco da bebida.
Eureca! “O jet lag desapareceu”, lembra ele. “De repente, me senti totalmente desperto”. Ao relatar essa história, quase duas décadas depois, Mateschitz ainda se lembra da excitação daquele momento. “Descobri essas bebidas em toda a Ásia, onde havia um mercado enorme para elas. Comecei a pensar: por que não temos esse produto no Ocidente”.
O Ocidente é claro, já tinha o ingrediente principal daquelas misturas asiáticas: a cafeína. A bebida que funcionou tão bem para Dietrich Mateschitz era um tônico da Tailândia chamado Krating Daeng (isto é, “Touro Vermelho”, ou seja, Red Bull) – mistura de cafeína, um aminoácido chamado taurina e um carboidrato, o glucuronolactona. O austríaco abandonou o trabalho de vender pasta de dente e investiu as economias da sua vida numa licença para negociar Krating Daeng no Ocidente. Depois de alterar um pouco o sabor e a embalagem e deixar a bebida gasosa, ele lançou-a na Europa, no fim dos anos 1980.
No início, as lojas não sabiam o que fazer com uma bebida energética. Ainda não havia nenhum produto assim e, portanto, inexistia mercado para ele. Mateschitz resolveu o problema com uma brilhante campanha de marketing. “Você tem coisas melhores para fazer do que dormir” ou “Red Bull lhe dá Asas”, proclamavam os anúncios. A Red Bull começou a organizar eventos de esportes radicais, de Kitesurf a paraglide, até campeonatos de Flügtag (máquinas voadoras movidas a energia humana). O mercado-alvo era a cultura jovem da Europa – pessoas com bom nível educacional, vigorosas e com altos salários –, que passavam longos dias na bolsa de valores e nas pistas de cooper, e longas noites nas discotecas, dançando e bebendo até o amanhecer.
Na virada do século XXI, o coquetel mais “quente” da moda entre os freqüentadores de discotecas na Europa era o Vodka Bull – isto é, Red Bull misturado com vodca. (Pode-se também tomar Bullgarita, ou seja, Red Bull com tequila; ou ainda Chambull, Red Bull com champanhe, entre outras curiosas misturas etílicas.) “Red Bull funciona sem parar,” diziam os anúncios, incluindo a bem-vinda garantia; “Acrescentar álcool não altera as propriedades do Red Bull”.
O Red Bull chegou aos Estados Unidos em 1997, promovendo uma série de eventos de esportes radicais, e contratando “superestrelas sociais” nas universidades para servir como “gerentes de marca”. Hoje o produto está presente em mais de 100 países, e vende quase 2 bilhões de latas por ano.
A sede central do Red Bull, num canto lindíssimo dos Alpes Austríacos, ao lado de um lago de montanha que parece uma jóia azul chamado Fuschlsee, mais se assemelha a um elegante clube de praia do que ao quartel-general mundial de uma empresa de bilhões de dólares. Mateschitz pediu ao arquiteto para criar o edifício com a forma de dois vulcões em erupção, refletindo a explosão de vendas do produto. Jovens funcionários de jeans e camiseta regata enchem o estacionamento da empresa com suas mountain bikes. Um grande cachorro negro dorme debaixo das palmeiras de 6 metros de altura no Lobby. Mateschitz, hoje com 60 anos, segue o mesmo código de comportamento: vai trabalhar de jeans e sapato esporte sem meias, e joga vôlei na praia a beira do lago com seus executivos juniores.
Modesto, Mateschitz faz pouco do seu papel no sucesso do Red Bull e dá todo o crédito à “fórmula”. “No marketing, o que fazemos é diferenciar de produtos já existentes”, explica ele. “O café oferece a cafeína, mas de forma amarga. O café não é frio nem refrescante. Outros refrigerantes são refrescantes e matam a sede, mas não proporcionam nenhum benefício. O prazer era uma boa coisa para tentar vender, mas vimos que também havia lugar no mercado para a eficiência, para uma bebida prazerosa que serve para uma função. Esse é o nicho; esse é o Red Bull”.
Controvérsias
A idéia de dar a um refrigerante uma “função”, acrescentando pesadas doses de uma droga viciante, é enervante para alguns. A França e a Dinamarca proibiram por completo bebidas energéticas como o Red Bull, devido a preocupações de saúde com o alto nível de cafeína e a adição de outros suplementos. No início, até mesmo as latinhas de Red Bull vendidas no seu país natal, a Áustria, traziam o aviso: “Nicht mit Alkoholmischen” ou “Não misture com álcool”.
Na Irlanda, a população ficou alarmada depois que um jogador de basquete de 18 anos tomou várias latinhas de Red Bull antes de uma partida – teve um colapso e morreu em quadra. A investigação do legista não concluiu de maneira definitiva se o Red Bull havia contribuído para essa morte súbita. Mas o colapso inexplicável de um rapaz atlético fez o governo irlandês criar um Comitê de Bebidas Estimulantes para estudar o impacto do energético na saúde pública da Irlanda.
“A primeira coisa que notei na reunião do Comitê era a quantidade de café que todos bebiam”, diz Martin Higgins, o dinâmico diretor da agência de segurança alimentar da Irlanda, encarregada da supervisão do estudo. “Acho que todos nós precisamos dos nossos estimulantes, seja lá como for.” Embora o comitê tenha examinado todos os ingredientes do Red Bull e de produtos semelhantes, concluiu que a cafeína era a maior atração. “O que as pessoas compravam não era tanto energia nem força física” dizia Higgins, “era aquele ‘pique’ da cafeína, em especial no ambiente das boates. E foi a cafeína que despertou mais preocupação no comitê”.
No fim, o comitê não encontrou nenhum risco nas bebidas energéticas cafeinadas – desde que consumidas em níveis moderados. O grupo recomendou pôr rótulos de alerta, advertindo que a bebida é inadequada a crianças, mulheres grávidas e pessoas sensíveis a cafeína. Outros alertas da saúde pública deveriam esclarecer que as bebidas energéticas cafeinadas não devem ser consumidas para a reidratação durante esportes.
No ano passado, a União Européia (EU), em parte com a orientação desse estudo irlandês, começou a exigir que os líquidos engarrafados com mais de 150 miligramas de cafeína por litro fossem rotulados como bebida “com alto teor de cafeína”. Por este critério, o Red Bull e a maioria de seus concorrentes são produtos de elevado teor de cafeína – como qualquer xícara de café –, mas a maior parte dos refrigerantes de cola não é. Essa exigência relativa ao rótulo vigora em todos os 25 paises da EU. A Austrália e Nova Zelândia também adotaram as exigências de avisos.
Um membro do Comitê de Bebidas Estimulantes da Irlanda não ficou nada satisfeito com o decorrer das coisas – e até se retirou desse grupo de estudos – é o psicólogo Jack James. Ele acredita que há poucas vantagens em pôr numa bebida o rótulo de alto teor de cafeína. Segundo ele, tal medida daria a falsa sensação de segurança a quem toma bebidas com níveis mais baixos de cafeína. Enquanto os consumidores do mundo todo continuam ingerindo essa droga ano após ano, James trabalha em seu modesto escritório no campus de Galway da Universidade Nacional da Irlanda, documentando as razões pelas quais esse consumo deveria parar. James, australiano de cabelos cacheados e uma determinação de ferro, beberica um copo de água morna durante a entrevista de quatro horas. Como ex-consumidor de cafeína, faz anos que decidiu ficar longe da substância. “Nas reuniões científicas, o pessoal brinca comigo: ‘Ei Jack, aceita um cafezinho?’”
James já criticou relatórios de pesquisas financiados pelas indústrias de café e refrigerantes, que, segundo ele, mostram a cafeína como uma substância benigna, ignorando as provas de seus possíveis efeitos negativos.
Os próprios artigos e pesquisas advertem que a cafeína é uma droga psicoativa que aumenta a pressão sanguínea, elevando assim o risco de doenças do coração. James foi até chamado de “chefe da cruzada contra a cafeína”. No entanto, o ponto de vista de Jack James sobre a cafeína é diferente da maioria dos pronunciamentos dos órgãos de saúde pública. É verdade que as indústrias de café, chocolates e de refrigerantes financiam trabalhos de laboratório sobre a substância, mas há também pesquisadores independentes. E o consenso parece ser que a droga mais popular do mundo não é perigosa quando consumida com moderação – até 300 miligramas por dia (ou seja, entre uma e duas xícaras de café, de 350 mililitros, ou seis latas de refrigerante).
Mesmo assim, a cafeína continua a ser uma droga, o que pode explicar por que tanta gente se preocupa. Ao longo dos anos, os estudos populacionais demonstraram que os consumidores de cafeína têm maior índice de câncer nos rins, bexiga e pâncreas, doença fibrocística da mama e osteoporose. Essas conclusões, contudo, não provam que é a cafeína que causa as doenças; só é possível estudar os efeitos a curto prazo.
Assim como outras drogas, a cafeína tem impacto indiscutível nas funções mentais e físicas. Vários estudos mostraram que a cafeína é analéptica (estimula o sistema nervoso central) e ergogênica (melhora o desempenho físico). Também é diurética, embora estudos recentes mostrem que, em quantidades moderadas, ela não desidrata – nem mesmo em atletas, como sempre se acreditou. As bebidas cafeinadas aumentam a produção de urina, mas é um efeito mais ou menos igual ao da água.
A cafeína também eleva a pressão sanguínea, mas é um efeito temporário. E alguns estudos provaram que aumenta a perda de cálcio, mas é um efeito tão pequeno que se pode compensar com apenas duas colheres de leite por dia.
Muitas pesquisas sugerem que a cafeína pode trazer benefícios à saúde, ajudando a aliviar a dor, incluindo as enxaquecas, mitigar os sintomas da asma e melhorar o humor. Como estimulante mental, torna a pessoas mais despertas, aumenta a cognição e a velocidade da reação. Combatendo a fadiga, melhora o desempenho em tarefas que exigem elevado estado de alerta, com dirigir carro, pilotar avião ou resolver problemas simples de matemática. E, apesar de seu uso quase universal, raramente se abusa da cafeína. “A própria cafeína impede o uso excessivo”, diz Jack Bergman, farmacologista da Escola de Medicina de Harvard. “A pessoa fica agitada, sente-se mal e não quer continuar a ingeri-la”. O ponto em que um indivíduo atinge esse estado de agitação varia muito. Algumas pessoas são geneticamente mais suscetíveis aos efeitos da cafeína e podem sentir aumento de ansiedade após consumir até mesmo pequena quantidade. Em uma minoria de pessoas, doses de 300 miligramas ou mais podem estimular o aumento de tensão, ansiedade e até ataques de pânico. Talvez seja por isso que alguns estudos mostrem que as pessoas nervosas em geral consomem menos cafeína.
Quanto ao uso de cafeína entre crianças, não há dúvida: como pesam menos que os adultos, deveriam consumir menos. O relatório do comitê das Bebidas Estimulantes da Irlanda aconselha desestimular nas crianças o consumo de bebidas de elevado teor de cafeína para não aumentar o nervosismo. Mas até agora não há provas conclusivas de que a substância, em pequenas quantidades, seja prejudicial às crianças.
Até mesmo para as mulheres grávidas os riscos parecem pequenos, enquanto se mantém o consumo diário em um nível moderado. Michael Bracken, da Escola de Saúde Pública de Yale, acompanhou os hábitos de milhares de grávidas nos últimos 20 anos. “Com base nos dados atuais, podemos dizer com segurança a uma gestante: se você toma menos de 300 miligramas de cafeína por dia – ou seja, de uma a duas xícaras de café –, não prejudicará seu filho.”
Após décadas de testes, a cafeína continua na lista do FDA de aditivos alimentares “geralmente reconhecidos como seguros”. “Examinando todos os estudos sobre a cafeína, é muito difícil argumentar que o consumo faz mal a saúde”, diz Bergman. “Os efeitos sobre o comportamento são reais, mas brandos. Sem dúvida, ela produz alguma dependência física. Eu levanto de manhã e tomo duas xícaras de café. Mas, quando não tomo os sintomas de abstinência não são graves”.
Alguns usuários discordam de Bergaman: passar um dia todo sem cafeína pode realmente provocar dor de cabeça, irritabilidade, falta de energia e, é claro, sonolência. Mas, em comparação com o vício da cocaína ou heroína, abandonar a cafeína e tarefa fácil e breve. Os sintomas de abstinência costumam desaparecer dentro de dois a quatro dias, embora em alguns casos possam durar até uma semana ou mais. Mesmo assim, o desejo de evitar o sofrimento de se privar da droga pode explicar porque bilhões de pessoas consomem cafeína com tanta volúpia todos os dias.
De fato, Jack James afirma que a dependência física generalizada da cafeína pode distorcer as conclusões das pesquisas, exagerando seus efeitos na melhora do humor. Se os cientistas comparam dois grupos de pessoas – os que ingeriram cafeína e os que não ingeriram –, qualquer melhoria no humor ou no desempenho do grupo cafeinado pode ser, simplesmente, o alívio dos sintomas de abstinência. “Talvez todos nos estejamos num desses ciclos intermináveis”, concorda Derk-Jan Dijk, do Centro de Pesquisas sobre o Sono da Universidade de Surrey. Você toma cafeína e fica mais alerta. Na manhã seguinte, o efeito já se desgastou e você precisa tomar mais droga para voltar a seu estado de alerta. Mas talvez nós possamos sair desse ciclo. Quem trabalha de dia poderia passar muito bem sem cafeína.
Rituais
Por outro lado, a cerimônia do café da manhã é uma parte normal da vida que nos dá prazer. Ao longo dos séculos, o homem criou inúmeros ritos para acompanhar o consumo de sua droga preferida. Por vezes, o ritual cresceu a ponto de transcender a própria bebida. No Japão, o chanoyu, ou cerimônia do chá, austero e elegante, ocorre no ambiente simples da casa de chá, onde o leve farfalhar do quimono roçando o chão de tatame ou a beleza singela de uma xícara de cerâmica feita a mão são tão importantes quanto o próprio chá. Os ingleses transformaram seu chá da tarde num cerimonial de pompa e luxo. Na esplendorosa Fortnum & Mason, loja fina de alimentos de Londres, o chá da tarde é servido entre pilares de mármore verde e enormes arranjos florais, em finíssimas xícaras de porcelana douradas e verdes. Garçons atenciosos servem canapês, canudos de chantilly e tortas de frutas tropicais, acompanhando o chá Earl Grey ou Lapsang Souchong. No centro do salão, um pianista toca On the Sunny Side of the Street – uma canção bem adequada, pois, como diz a letra, você se sente rico como Rockefeller – pelo menos até a chaleira esvaziar e o garçom trazer a conta (44 dólares!).
Os americanos, claro, criaram rituais mais informais para consumir a cafeína. Uma rosquinha e um café no Dunkin’ Donuts ou um café instantâneo, com leite em pó e adoçante, tomado a mesa de trabalho. Mas nos últimos dez anos o ritual americano do café da manhã ficou bem mais elegante. Uma enxurrada de novos estabelecimentos que servem café transformou o velho e aguado café de 75 centavos, com direito a refil grátis, em uma luxuosa bebida de 6 dólares, misturada e preparada especialmente para cada cliente por um “barista” pessoal.
“Nos EUA, criamos novo ritual para o café”, diz Howard Schultz, o inventor da bilionária rede de cafés Starbucks. Em duas décadas, Schultz transformou um único balcão que servia café expresso, dentro de uma lanchonete de Seattle, em uma empresa listada na Fortune 500. Ele criou um ícone global tão conhecido que a revista Playboy já publicou um artigo sobre “as mulheres do Starbucks”. O próprio Schultz, de 51 anos, consumidor de cinco xícaras de café por dia, é o retrato da intensidade, andando para lá e para cá em seu escritório e lembrando como tudo começou.
Schultz era vendedor de café em grão para uma loja chamada Starbucks – o nome vem de um personagem do livro Moby Dick, do autor americano Herman Melville. Em 1983 Schultz visitou Milão, na Itália, e apaixonou-se pelo ambiente dessa grandiosa instituição italiana, o balcão de café expresso. “O lugar tinha um café excelente, mas não era só isso”, diz, entusiasmado. “Era um local para conversar, para se formar uma comunidade, fazer contato humano. E um café de boa qualidade era o elo entre as pessoas. Daí pensei: bem que podíamos fazer isso em Seattle.”
Em abril de 1984, Schultz inaugurou um pequeno balcão de expresso nos fundos da loja de café em grãos e passou a oferecer bebidas misteriosas como Caffe Latte, jamais sonhadas por estabelecimentos tradicionais americanos como Dunkin’ Donuts. Dentro de poucos dias havia longas filas na calçada. Howard Schultz logo deixou a loja e abriu seu próprio café, chamado Il Giornale, ou seja, “O Diário”. Dois dias depois, comprou o estabelecimento original de seu ex-patrão. Hoje há mais de 8.500 Starbucks no mundo todo, e outros 1.500 devem abrir este ano.
Schultz não gosta de dar destaque ao papel da cafeína no sucesso da empresa. “Não creio que seja por causa da cafeína. Acredito que o mais importante é o ritual, o aspecto romântico da coisa toda”. Mas a cafeína está presente. A alguns quilômetros do escritório de Schultz, em uma usina de torrar café em Kent, estado de Washington, o supervisor Tom Walters sabe disso muito bem. “Já me pediram para não fazer a ligação entre café e cafeína”, diz Walters, caminhado entre montes de sacos de 70 quilos de grãos de café, vindos da Colômbia, Costa Rica, Nicarágua, Indonésia. “Mas nós vemos muita cafeína por aqui. Quando torramos os grãos, a cafeína se concentra numa camada na torradeira. Então, quando as pessoas estão muito ocupadas e não podem fazer uma pausa para o cafezinho, simplesmente passam o dedo pela torradeira, lambem os resíduos e conseguem seu pique dessa maneira.”
É claro que conseguir esse pique é o motivo pelo qual as bebidas mais populares do planeta – café, Coca-Cola, Pepsi, chá – contenham cafeína. Seja um universitário com seu café no laboratório ou um monge com seu chá verde no templo, o estimulante preferido da humanidade está em ação todos os dias, no mundo inteiro.
E todas as noites também. Entre as luzes pulsantes e o ruído ensurdecedor do Egg, em Londres, Lee Murphy está dançando ao som da batida eletrônica de Give It What You’ve Got! Ele toma um longo gole de uma de suas latinhas de Red Bull. “Amigo, veja bem. Sei que isto aqui é uma droga”, grita ele, mais alto que a barulheira da discoteca. “Mas preciso deste pique!”
Comentários